Escola de Escrita

O que é ser nerd, por Marta Savi

Venha comigo e se divirta. A Galáxia é um barato.

Só que você vai ter que pôr esse peixe no ouvido.

Ford Prefect

É bem possível que os mais jovens não tenham essa memória, mas gostar de heróis e robôs – hoje tão convencional (que é de uso ou de praxe; consolidado pelo uso ou pela prática), tão mainstream – já foi motivo de piada, mas daquela piada que não é engraçada pra todo mundo.

Já foi (bem) ruim ser nerd.

Muito se especula a esse respeito – ou pode ser, também, que ninguém realmente se importe. Mas, partindo da premissa (ponto ou ideia de que se parte para armar um raciocínio) de que muito se especula a esse respeito, podemos dar uns passos atrás e pensar sobre esse tempo, em que não era muito bom ser nerd.

O termo não tem lá uma fonte muito clara – prato cheio para que crie seu próprio mito de origem – e se popularizou como chacota (atitude ou dito zombeteiro, desdenhoso; chança, escárnio, zombaria) por volta da década de 1950, nos Estados Unidos. Ser nerd, no início, era um pouco sinônimo de ser inadequado (que não se adequou; impróprio, inconveniente). Essa adjetivação da diferença do modelo padrão transformou o nerd também em um estereótipo (ideia ou convicção classificatória preconcebida sobre alguém ou algo, resultante de expectativa, hábitos de julgamento ou falsas generalizações).

Um estereótipo que ainda permanece vigente: pensar em nerd é pensar num menino gordinho, cheio de espinhas e vazio de skills sociais, escondido atrás do computador ou do videogame no porão da casa dos pais. A generalização do nerd não é diferente das generalizações que costumamos fazer com políticos, jogadores de futebol, advogados. Cada categoria ganha uma caricatura (desenho de pessoa ou de fato que, pelas deformações obtidas por um traço cheio de exageros, se apresenta como forma de expressão grotesca ou jocosa).

Zombados na escola – e na vida – durante décadas, os nerds encontraram formas de resistir. Algumas atividades – quase todas realizadas na segurança daquele porão – parecem ter sido fundamentais para alimentar essa proposta de vida que, mais tarde, desembocaria em orgulho (sentimento de prazer, de grande satisfação com o próprio valor, com a própria honra). Os superpoderes dos heróis, as histórias de ficção científica, as viagens espaciais e as aventuras épicas ou distópicas. Cada uma dessas temáticas tem características particulares e um tipo próprio de público, mas se é possível fazer um paralelo entre elas, é o de que são outros lugares. Diferentes daqueles que os nerds precisavam enfrentar quando ainda era muito ruim ser um nerd. Lugares em que os nerds poderiam ser outra coisa, poderiam experimentar novas experiências e desempenhar outros papeis.

Crescer com personagens tão distantes – no tempo, no espaço, na constituição de si – e, ao mesmo tempo, tão próximos pode ter sido uma das razões que fez a cultura nerd se solidificar durante essas décadas. Não se trata apenas de um adolescente picado por uma aranha que passa a ter sentidos aguçados e habilidades especiais. Mas sim de um adolescente que ainda precisa fazer provas, assistir às aulas, ir às excursões do colégio e lidar com os horários do jantar, enquanto também é o amigão da vizinhança. Gente como a gente. E esta é uma frase que pode ser adaptada para praticamente todos os personagens icônicos da cultura nerd – heróis, robôs, bruxos ou hobbits.

Já foi (bem) ruim ser nerd. Não é mais.

Enquanto as primeiras gerações de nerd cresciam, o padrão de viver escondido no porão também vai começando a se transformar. Agora crescidos, os nerds deixam de ser apenas consumidores e começam a produzir suas próprias histórias. Nos quadrinhos, na literatura, na TV e no cinema. Primeiro, são denúncias de como foi ruim essa experiência de crescer. Depois, esse universo se expande – o nerd faz sucesso na vida adulta, sabe operar dentro de uma sociedade em que deter traços de autodidatismo e facilidade com fluxo de informação e novas tecnologias são boas características. Dá pra situar essa virada nas décadas de 1980, 1990. O nerd, agora, não é mais tão inadequado assim.

Essa mudança de estrutura faz com que o estereótipo passe a sofrer algumas alterações. Já no começo do nosso século, parece ter algo de cool em ser nerd. Os quadrinhos ganham cada vez mais edições em capa dura, os filmes fazem cada vez mais sucesso, as histórias de robôs estão cada vez mais popularizadas entre os outros tipos da escola, os colecionáveis vendem cada vez mais. As referências intertextuais – que antes faziam parte de um dialeto próprio falado entre iguais – passam a ser cada vez mais compreendidas.

Quanto mais o menino gordinho, cheio de espinhas e vazio de skills sociais, sobre do porão pra sala de estar de casa, menos ele se parece só com um menino gordinho, cheio de espinhas e vazio de skills sociais. Mais a gente descobre que, na verdade, ele não era só menino gordinho, cheio de espinhas e vazio de skills sociais. Ele era outros meninos. Outras meninas. Ele era, também, gente adulta. Ele não era só leitor de quadrinhos, só fã de Star Wars, só entusiasta da Terra Média. Ele era muitos. Aquele menino gordinho, cheio de espinhas e vazio de skills sociais não tem só essa cara.

Hoje, se a gente quer mesmo uma definição para fora dos parênteses, podemos dizer que o nerd é alguém que alimenta um grande interesse por determinado assunto – geralmente bem mais de um assunto – a ponto de pesquisar, colecionar, escrever e não sossegar enquanto não esgotar aquele(s) tema(s). Hoje, se a gente quer mesmo um estereótipo, pode ser o de dizer que quanto mais gente se identifica como nerd, menos o nerd se parece com um tipo de gente só.

E pra você, o que é ser nerd?


Marta é de humanas. Odeia quartas-feiras, leva jogos de tabuleiro e de videogame muito a sério. É graduada em História e em Direito, e mestra em (História do) Direito. Tem paixão por caixinhas e por livros de ficção científica, embora tenha alguma dificuldade com os conceitos de física quântica e hiperespaço. É apegada aos mínimos detalhes, moderadamente ansiosa e espalha textões pela internet afora. Acha possível responder quarenta e dois – por extenso mesmo – para qualquer pergunta.