Escola de Escrita

De como um evento na Liberdade, em 1964, resultou nos refinados hábitos de um cirurgião de reputação duvidosa

[um conto de Luana de Salles Penteado]

Não possuo profundidade. E nem estou sendo autocrítico nessa análise de mim mesmo, posto que a minha falta de profundidade nada mais é do que um fato literal. Um papelzinho – esse sim tridimensional, ainda que de profundidade rasa – contém minha existência absolutamente plana. É claro que se tornou um desafio maior ainda a existência por inteiro: id, ego, superego, além de toda aquela parafernália da consciência, subconsciência e inconsciência.  

Meu pesadelo é quando Otacília me deixa deitado sobre qualquer superfície: uma mesa, a escrivaninha, uma prateleira qualquer, a cama. Sou incapaz de me erguer, sequer de me mexer, e minha visão limita-se ao teto. O que me resta nesses momentos, é pensar. A vantagem do pensamento é seu total desrespeito às limitações das dimensões de onde nasce. Sou um papelzinho pensante. Com muito orgulho. E tédio. 

Naturalmente, prefiro quando fico apoiado em alguma coisa que me mantenha de pé. Dessa forma, ainda que tenha perdido minha capacidade de enxergar a profundidade, me valho das sombras projetadas a partir das lâmpadas, do sol no fim da tarde entrando pela janela da sala ou de luminárias em pontos estratégicos. Otacília gosta de velas, o que me traz experiências bastante peculiares, criando sombras balançantes, que atiçam novas possibilidades às dimensões de meu pensamento. 

E é, portanto, dessa perspectiva, combinando sombras estáticas e outras dançantes, que observei os fatos narrados a partir daqui. Tudo começou com o diálogo que escutei enquanto olhava para o teto: “Mas, mamãe, isso são amígdalas!”, exclamou estupefato, não sem um quê de diversão, o filho de Otacília. Seu tom a deixou levemente confusa, embora nem um pouco preocupada, que aos noventa e dois anos já não fazia a menor ideia do que seriam amígdalas. Ela mesma já não as possuía há oitenta anos. E, há doze, comemorava nos dias dezessetes de novembros seus oitentas anos. Por essa lógica, ela nunca nem chegou a ter amígdalas. 

“Umeboshi, meu filho, o nome correto é umeboshi”, a mãe foi logo explicando, enquanto assumia os ares macrobióticos de sua juventude. “É uma ameixa japonesa que se prepara numa salmoura, com shoyu, vinagre…”.

O filho enfiou o palito de dentes no pote, espetou outra amígdala e a pôs na boca sem dar a menor atenção à advertência da mãe: “Não, não, é só uma por dia, se não o sal vai te fazer mal, credo, Heitor, você nem parece que é médico”, e Otacília arrancou o pote de suas mãos a tempo de evitar que engolisse já a quarta amígdala. “Uma por dia, deixa dissolver lentamente na boca, ou pode misturar no arroz”, e saiu do quarto de Heitor levando consigo o potinho de amígdalas temperadas. 

Eu, apesar dessa minha atual existência bidimensional em preto e branco me manter privado da liberdade e à mercê das fantasias erótico-românticas de Otacília (“Ó que maridão, esse meu Sigmund”, dizia ela me estendendo aos olhos de suas netas), observei interessadíssimo o desenrolar dos fatos em torno da coleção particular das amígdalas que Heitor, cirurgião de reputação duvidosa, tinha trazido dias antes para esconder na casa da mãe.

Otacília costumava manter-me sempre ao alcance de suas mãos, e me carregava para todo o canto, mas embora não tivesse nenhum problema em ficar nua diante de mim, até se esforçava para me seduzir, era tomada de pudores na hora de atender às suas necessidades fisiológicas, talvez porque eu mesmo já as não tivesse. Foi ao atender um desses chamados da natureza que ela me deixou apoiado na lombada de uma coleção da Taschen de livros de arte moderna, na estante da sala. E assim descobri a coleção de amígdalas. 

O sol do fim da tarde inundava a maior parte da sala, e logo após um discreto barulhinho de chave girando na fechadura, vi a projeção da sombra de uma pessoa entrando pé ante pé. A sombra parou bem no meio da sala, esticando-se até quase a estante. Intuí que fosse Heitor, e me pareceu que ele escutava atentamente o ambiente. Constatando que a mãe se achava, como diria Boccaccio, livrando-se do peso supérfluo do baixo ventre, veio até a estante, a sombra crescendo até minha prateleira. Ignorou por completo minha presença e puxou três ou quatro livros da Taschen – se bem me lembro, um Picasso, um Dalí, uma Tarsila e talvez algum outro mais. Notei, com satisfação, que os nomes e pinturas escritos nas capas, estando no mesmo plano bidimensional que eu, me eram totalmente acessíveis, ao contrário da escultura mantida ao lado da poltrona, cuja sombra jamais me foi suficiente para reconhecê-la. 

Não demorei muito, porém, a voltar minha atenção novamente às atividades da sombra de Heitor. O que me desviou da apreciação das capas dos livros foi um estranho reflexo que me atingiu, e que logo percebi ser causado pela refração dos raios solares atravessando algo que devia ser um pote de vidro, provavelmente contendo esferas mergulhadas em um líquido. Na diagonal, a luz de uma vela acesa criou um outro jogo de sombras, um contraponto à rigidez daquela provinda do sol. Sobre a capa de Dalí, depositado à minha frente, o reflexo balançou-se durante poucos segundos – mais que o suficiente para botar minha mente em plena atividade – e então Heitor guardou o pote no fundo da prateleira, reacomodando em seguida os artistas em seus devidos lugares. 

Sabendo que Heitor era um cirurgião cuja função no hospital resumia-se quase que só à remoção de amígdalas, não demorei a deduzir do que se tratava o conteúdo do potinho. Já Otacília, como era de se esperar, acabou por encontrar o pote de amígdalas atrás da coleção de arte moderna, e imediatamente concluiu serem aquelas ameixinhas japonesas compradas numa feira lá no bairro Liberdade, em 1964. Não notou que quase sessenta anos a separavam daquela feira, e apenas pensou ser uma ótima ideia preparar uma conserva. “Ora, veja, meu querido Sigmund”, ela dirigia-se a mim, “quase me esqueço de preparar minhas umeboshis”. Foi para a cozinha carregando as amígdalas, não sem antes me acomodar no bolsinho de seu vestido, bem na altura do seu seio esquerdo, romântica incurável, essa senhora. 

Foi assim que começou o hábito: de tempos em tempos, Heitor chegava em casa com um novo potinho de amígdalas. “Veja, mamãe, o que eu trouxe lá da Liberdade, para a senhora preparar”, e lá ia uma Otacília cantarolante preparar umeboshis, as quais eram degustadas pelo filho, uma a uma, entre golinhos de vinho tinto, se é que era mesmo vinho…

A minha análise dos eventos aqui narrados, mais uma vez, ainda que vistos a partir desta existência bidimensional, confirma minha velha teoria: a culpa é sempre da mãe.


* Este texto foi produzido durante a primeira turma do Laboratório de Contos, ministrado por Julie Fank e Luci Collin, no ano de 2023.